6 de Agosto de 1966 foi inaugurada a Ponte Salazar...sabem quem foi o primeiro a atravessá-la?

O motorista de Seia, José Nunes,  foi o primeiro a atravessar a nova travessia do Tejo

Ao início de uma tarde muito quente, um Morgan 850 verde atravessou sozinho a ponte sobre o rio Tejo. Ao volante, Carlos Ferreira Brás, de 33 anos, "olhava para um lado e para o outro a ver a paisagem". Consigo no carro seguiam Leonel Nogueira e José Nunes; a mulher e a filha tinham ficado em casa. Ao chegar ao fim do tabuleiro, um homem mandou-o parar. Era o ministro das Obras Públicas, Arantes e Oliveira, que lhe perguntou de onde vinha e o que fazia: vinha de Seia e era motorista de uma fábrica de lanifícios. Depois, deu-lhe um livro, uma placa e uma medalha que assinalava o seu feito: tinha sido o primeiro a atravessar a ponte Salazar (actual ponte 25 de Abril). Foi a 6 de Agosto de 1966, faz este sábado, dia 6, 50 anos.
A abertura da ponte era o tema principal em Lisboa e fazia a capa dos jornais nos dias anteriores à inauguração: milhares de portugueses  estavam a organizar-se em excursões para ir à capital. Nessa manhã, Carlos vestiu-se e desceu até ao restaurante do cunhado, junto à Rua do Arsenal, em Lisboa, onde tinha dois amigos à espera. "Tomámos o pequeno-almoço e pegámos no carro às 8h45", conta o motorista, hoje [à data da publicação do artigo, em Agosto de 2011, de quando é a fotografia aqui publicada] com 78 anos. O sol já estava forte quando o seu carro chegou aos Jerónimos. Nesse dia fizeram 31,3°C. 


Piqueniques para celebrar
Carlos Brás, que todas as semanas percorria 3.500 km entre Seia e Lisboa para fazer carregamentos de lã, conhecia os truques para fugir à confusão. Àquela hora, as ruas junto ao rio começavam a encher-se: famílias inteiras, com os cestos de verga para o piquenique, procuravam o melhor lugar para assistir à cerimónia que decorreria na praça da portagem. Muitos tinham chegado em autocarros no dia anterior vindos de Paredes de Coura, Pombal, Portimão. Por todo o lado, vendiam-se bandeiras, balões, guloseimas e produtos alusivos à data: pratos rasos com montagens fotográficas de Alcântara e da ponte, a 5 escudos [que equivaleriam hoje a 2,15 euros], estatuetas do Cristo-Rei, a 12$50 [5,38 euros].

Muitos reuniam-se nos cafés à frente da televisão. "Vista do ecrã, a ponte tem um ar de intimidade que confunde o mais sisudo", escrevia o Diário de Lisboa. O responsável pela magia foi Hélder Mendes, realizador destacado para a emissão da RTP nesse dia. Com uma década de experiência, precisou de alguns meses para preparar a transmissão. "Fui pedindo meios que não existiam e as pessoas entusiasmaram-se", diz à SÁBADO. Ao todo, foram 12 câmaras: seis na margem sul, três na margem norte do rio Tejo, uma no topo de um dos pilares da ponte e outra num carro, vindo de Espanha, que acompanhou o cortejo de individualidades que atravessaram a ponte a partir de Lisboa. França pediu uma câmara sem fios para filmar de um helicóptero. Foi daí que se captou a primeira imagem desse sábado: a rotunda do centro-sul, em Almada.

Salazar e Amália
Amália Rodrigues estava nervosa no concerto de inauguração da ponte, em Queluz. Pela primeira vez, ia ter Salazar a assistir a um espectáculo seu, e este até podia não ter acontecido: a fadista estava em Hollywood e só conseguiu bilhete para Lisboa com a ajuda de um português, que era accionista de uma companhia aérea.
Sentado na régie improvisada numa tenda emprestada pelo exército e montada junto ao Cristo-Rei, Hélder Mendes, hoje com 80 anos [à data da publicação do artigo, em Agosto de 2011], geriu tudo. As imagens foram montadas e enviadas para a Eurovisão: a inauguração da "maior ponte suspensa do mundo para o tráfico rodo-ferroviário", como anunciava a propaganda do regime, foi transmitida em diferido para 100 milhões de europeus, divulgou o Diário de Notícias de 7 de Agosto.

Quando Carlos Brás e os amigos começaram a subir por Monsanto, já se ouvia no céu o helicóptero da RTP. Mas, a 300 metros da ponte, uma brigada da Polícia de Viação e Trânsito(PVT) obrigou-os a parar. Eram 9h15 e até às 15 horas só os convidados podiam passar. Eram tantas as viaturas oficiais que as quatro filas de trânsito só funcionavam no sentido Lisboa-Almada. Às 10h23, o presidente do Conselho, António de Oliveira Salazar, chegou à praça da portagem.
Foi acompanhado à tribuna por uma das 30 hospedeiras que trabalhavam na festa. Lá, José Canto Moniz, responsável pelo Gabinete da Ponte (e que dois anos depois seria ministro das Comunicações), orientava tudo ao telefone. Foi daí que, às 10h30, viu chegar o Presidente da República, Américo Tomás, que vinha de Sesimbra, onde tinha pernoitado. 

Os projectos desde os anos 30 e Salazar contra
Estava na hora: a banda da Marinha começou a tocar o hino nacional enquanto os seus três navios, Diogo Cão, Corte-Real e Sagres, fizeram a salva de 21 tiros e os marinheiros gritaram sete vivas. Um grupo coral cantou Aleluia, de Handel. Seguiram-se 51 condecorações aos principais responsáveis pela construção da ponte e os discursos oficiais.

O do presidente da Câmara de Lisboa foi o mais laudatório para Salazar. "Ele faz ressurgir Nun’Álvares." Franco Nogueira conta na sua biografia que Salazar considerou "horrível, estúpida e ridícula" a comparação. Mas o autarca prosseguiu: "O Tejo, a velha estrada de Lisboa, tem razão para gritar connosco: muito obrigado, Salazar, por nos ter dado também a ponte Salazar!" Na verdade, o ditador até tinha votado vencido contra a construção da ponte numa reunião do Conselho de Ministros de Janeiro de 1959. Achava que o custo poria em risco a estratégia de poupança e a travessia poderia continuar a fazer-se por cacilheiro ou pela ponte de Vila Franca de Xira.

Já desde os anos 30 que se planeava a construção de uma outra travessia mais próxima de Lisboa: projectara-se até uma ligação Beato-Montijo, adiada pela II Guerra Mundial. Com o plano Marshall, desenhado pelos norte-americanos para reconstruir a Europa, houve quem tivesse ponderado incluir a construção da ponte entre as obras a realizar.

Mas com os 7,6 milhões de contos Salazar investiu nas instalações portuárias e nos caminhos-de-ferro. Porém, em Abril de 1959 autorizou o lançamento de um concurso público, ganho pela empresa norte-americana United States Steel Export Company, que subcontratou 19 empresas, 11 das quais nacionais. A construção começou a 5 de Novembro de 1962 e devia prolongar-se até Fevereiro de 1967. Acabou por ser inaugurada seis meses antes – custou 2,2 milhões de contos e ainda se pouparam entre 80 a 90 mil contos. Construída em velocidade recorde, foi responsável pela morte de quatro operários e, desde aí, nunca deu problemas. "Foi construída com bons materiais", diz José Paulo Costa, administrador da Stap, empresa do consórcio que está a fazer obras de manutenção na ponte.

O nome da ponte mantinha-se quase secreto. Foi descoberto por um grupo de jornalistas que visitou as obras uns dias antes e leu num pilar da Avenida da Índia "Ponte Salazar". Até sobre isto Salazar terá manifestado dúvidas. Um dia terá perguntado ao ministro das Obras Públicas, Arantes e Oliveira, se as letras estavam soldadas ou aparafusadas – se assim fosse, seriam fáceis de tirar.

As carcaças partilhadas com os agentes
Às 12h44 declarou-se a abertura simbólica e o hino nacional foi entoado. Quando se largaram os primeiros foguetes e os cinco mil pombos das associações columbófilas de Lisboa e Setúbal, já Carlos Brás estava de novo ao volante do seu Morgan. Os guardas da PVT tinham-lhe dado sanduíches de queijo e conservas enquanto esperava, mas a fome continuava, e faltava o vinho. Por isso, foi a uma churrasqueira de Campo de Ourique. "Comprei três frangos com piripíri, um garrafão de cinco litros de vinho e 20 carcaças", conta. Dividiu tudo com os agentes. 

Como ainda era cedo para atravessar a ponte, estendeu uma manta e deitou-se atrás do carro. "Descansámos um bocadinho." Às 15h, a PVT recebeu a ordem pelo rádio: "Já pode entrar." 

Subiu para o carro e arrancou. Atrás de si vieram 50 mil pessoas na primeira hora. E mais 150 mil até à 1h. O ritmo era incrível e os carros não mantinham mais de meio metro entre si. Foi "o maior engarrafamento de que há memória", concluiu o Diário de Notícias.

José Leite tinha 7 anos e esteve lá. Sentado no banco de trás do Simca 1301 do pai, começou no pára-arranca junto ao Liceu Francês. Só atravessaram a ponte mais de duas horas depois. Mas felizmente o carro não sofreu as avarias de outros mais antigos. Houve dezenas de embraiagens queimadas e muitos pneus gastos rebentados no contacto com a grelha metálica da ponte.
A maior da Europa
Em 1966, a propaganda do Estado dizia que era a maior ponte fora dos EUA: 
- 15 quilómetros de auto-estradas de acesso à ponte
- 6,5 milhões de metros cúbicos de solos e areias foram escavados
- 300 mil metros cúbicos de betão foram usados nas estruturas e fundações
- 80 mil toneladas de aço
- 100 milhões de europeus terão visto a inauguração na Eurovisão
- 50 mil carros atravessaram a ponte nas primeiras 10 horas
- 60 km hora: era a velocidade máxima permitida
- 2227,64 metros entre os maciços de ancoragem: era a maior ponte fora dos EUA
- 11 248 fios de aço compõe os cabos paralelos que sustentam a ponte
No tabuleiro, era difícil cumprir as regras. Para apreciarem a vista, os condutores conduziam abaixo dos 60 km/h recomendados. Os agentes da PVT apitavam e os carros aceleravam. Punham-se cabeças de fora para ver a paisagem: "A cabeça para dentro. Olhe que é perigoso", recomendavam os polícias.

Dada a confusão, Carlos Brás voltou de cacilheiro. À noite foi assistir ao fogo-de-artifício junto à Ribeira das Naus. Américo Tomás e Salazar já então tinham deixado a recepção oficial oferecida na Câmara de Lisboa: além do jantar de gala, assistiram aos espectáculos da bailarina Maria Manuela Varela Cid, da harpista Henriette Ancet de Sousa e da cantora Dulce Cabrita. A actriz Ana Paula recitou um poema. 

O bebé que foi nascer a Lisboa
Antes da meia-noite, os Chefes de Estado e de Governo entraram na sede da Cruz Vermelha, na Rocha do Conde de Óbidos, para ver o espectáculo. Milhares tentaram fazer o mesmo. Da Avenida 24 de Julho a Belém "não se avançava um passo", escreveu o Diário de Notícias. Os eléctricos passavam apinhados com gente pendurada.

Os primeiros foguetes foram lançados à hora certa de ambas as margens do rio. Continuavam as filas para a ponte. O maior fluxo registou-se entre as 24h e as 3h. Na manhã seguinte, devido à celebração de uma missa junto ao Cristo-Rei, o trajecto foi encerrado ao público. Só se abriu uma excepção: uma grávida quase a dar à luz precisava de chegar ao hospital em Lisboa.


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