Já ouviram falar da Maria Cachucha?
Uma reportagem “sensacional”a Maria Cachucha em 1942
Maria Purificação da Silva (1900-1960) popularmente conhecida
por Maria Cachucha, trabalhava no Matadouro Municipal e causava admiração a
forma como ela desempenhava tal profissão. Nessa época a única em Portugal que
matava bois, com uma destreza impressionante.
«Quando nos falaram de Maria Cachucha de
Torres Vedras, não acreditávamos.
Seria possível que uma mulher
fosse magarefe num
matadouro em Portugal?
Seria verdade que tivesse
bigodes como um homem, fizesse uma vida de rapaz nos cafés, e que tudo isto se
passasse em Torres Vedras,
na província?
Era caso para nos intrigar.
Aguçava-nos ainda a curiosidade, o facto de em Portugal o jornalismo ser pouco
fértil em incidentes deste género. Era necessário ir ver, necessário saber, se
não havia nestas informações algo de exagero. Resolvemos partir para Torres
Vedras, e ver de perto o “fenómeno”. A nossa visita ia com certeza
espantar Maria Cachucha,
pouco habituada a que jornalistas venham propositadamente de Lisboa para a ver.
Quando chegámos a Torres
Vedras logo nos indicaram onde poderíamos encontrar a Maria Cachucha. Toda a gente
a conhece. Ou estava no matadouro, ou talvez em casa a dormir. Era meio-dia
Alguém mesmo rematou “Deve estar a dormir; ontem andou na pândega!…”
Seguimos para o
matadouro. Maria Cachucha não
estava ainda. Dormia com certeza – disseram-nos. Fomos até casa dela. Batemos.
Lá dentro ouvimos vozes.- Maria
Cachucha está?…
Uma voz estranha responde:
–Estou…. E depois: Vou já!
Ouviram-se ainda vozes. A
porta abriu-se e Maria
Cachucha apareceu-nos.
Forte como um touro, bigode,
cigarro nos lábios, lenço amarrado à cabeça e vestida de mulher, Maria Cachucha está
habituada a esses espantos e sorri-nos com o seu sorriso franco de bom
camarada, ajudando-nos a falar.
-…Maria Cachcucha… Somos
jornalistas. Gostaríamos de conversar um pouco consigo…
Uma voz máscula, baixa, brutal
mesmo, responde-nos:
–Pois sim…
E a conversa começa:
-Nós viemos para a ver
“matar”….
–Então não tiveram sorte. Hoje não “mato”. Se tivessem vindo na
sexta-feira… Era dia de matança… Hoje não.
– Você não quer vir até ao
matadouro mostrar-nos como trabalha?
–Tá bem!… Posso ir…
E com o à-vontade, as maneiras
dum rapaz, encaminha-se para o nosso carro, entra e instala-se.
Seguimos para o matadouro, e
lá, durante algum tempo, vimo-la no seu elemento, esfolando, agarrando as
ferramentas com as suas mãos fortes, serrando as rezes, beata bumegante ao
canto dos lábios…
Quando lhe pedimos para nos
fazer uma demonstração da “matança” acede de boa vontade e é ela mesma que vai
buscar a vaca, a amarra e a “mata”… a fingir, só para a foto.
Feita a demonstração, Maria Cachucha segue
connosco para o centro de Torres… para o café… (Antiga taberna do Venceslau)
Sentados, é ela que chama o
criado. -É já!…
E voltando-se para nós,
pergunta:
-O que é que vocês tomam…
-…Dois cinzanos… (bebida)
Voltando-se para o criado, em
“habitué” exclama:
–Dois cinzanos, um café e um bagaço para mim!…
Sentimo-nos mais à vontade.
–Maria Cachucha, há quanto
tempo você faz vida… livre… de rapaz?
– Desde os 12 anos… Sempre fui assim… Gosto do
convívio dos homens… Tenho bons amigos, e temos feito boas pândegas!… As
mulheres são todas umas lambisgoias!…
– O que fazia você antes de
“matar”?…
–Andei muito tempo a “tocar” gado de noite e de dia entre Vila
Franca e Malveira… Sempre lidei com bichos…
Maria Cachucha tira uma caixa
da algibeira e novamente chama o criado:
–Traz-me um maço de superior.
-Você é casada, Cachucha?…
– Não, sou viúva há mais de 10 anos…
– Não tem filhos?
–Tenho, tenho um matulão de 24 anos lá para Lisboa. Ainda lá
estive na segunda- feira passada. Gosto muito de Lisboa, fazem-se lá boas
pândegas! Tenho lá muitos amigos, mas aquilo custa caro. Outro dia o Franco gravador, cervejas e carapáus fritos, durou até às 6
da manhã! Mas, fartámo-nos de gozar.
Enquanto nos diz tudo isto, as
suas mãos fortes, com anéis de homem, vão enrolando um cigarro com a agilidade
de quem faz isso todos os dias. Mas estamos na hora de almoço e despedimo-nos
de Maria Cachucha lá
está, mas desta vez não está sozinha, amigos e camaradas rodeiam-na. Aos risos,
às gargalhadas, pressentimentos que Maria
Cachucha acaba de contar uma das suas histórias.
Abancámos também e a nossa
conversa recomeça. Mais dois cinzanos (bebida) para nós, mais um café e um
bagaço para a Cachucha,
e, conversamos.
– Você tem sempre trabalho
aqui em Torres Vedras, no Matadouro?…
– Não! Trabalhei também em Leiria e também uma
vez na Nazaré. Mas na Nazaré foi só para lhes mostrar que fazia aquilo tão bem
como eles… Não me julgavam capaz. Foi um gozo!…
E Maria Cachucha ri.
-É o seu único modo de vida?
–Não, faço também uns negociozitos… mas nada de volfrâmio!…
-Enfim, nada de trabalhos de
mulheres?
–Arranjo a minha casa, faço a minha comida mas, costura não…
tenho as mãos finas demais para isso…
-a sua maneira de viver nunca
lhe acarretou dissabores?…
–Sim… Uma vez em Viseu. Julgaram que eu era um homem vestido de
mulher. Tomaram-me por um passador de moeda falsa que tinha vindo a Viseu… Foi um
caso sério… Mas fartei-me de rir depois… Os polícias ficaram parvos!…
-Você não tem família, em
Torres?
-Tenho. Com a minha irmã é que
eu estou zangada, não nos falamos. Ela não compreende a minha vida… É mulher e
basta!…
Maria Cachucha ri, os amigos riem, e
nós fazemos o mesmo…
Por fim despedimo-nos. Temos
que partir para Lisboa. O seu aperto de mão vigoroso faz-nos pensar que é
melhor estar bem com ela que mal e partimos. Qualquer coisa nos choca, sem
sabermos o quê. Estivemos com uma mulher mas com uma mulher estranha. Temos
vontade de fugir… de ver uma mulher qualquer, sem bigode, sem aquele palavreado
masculino, sem aquela voz, uma mulher que não seja magarefe, que não “mate”,
que não esfole, que não viva como um homem, enfim, uma mulher… feminina…
Já no automóvel, a caminho de
Lisboa pensámos: Ainda bem que nem todas as mulheres são Marias Cachuchas… senão era o fim
do mundo!…»
Reportagem feita pelos jornalistas: Rogério (texto)- António H.
C. (fotos) Julho de 1942
Uma entrevista elaborada pela revista EVA, em Julho de 1942 e
republicada pela TOITORRES NOTÍCIAS (material histórico cedido do seu arquivo
por Adão de Carvalho). Existe um exemplar desta entrevista na Biblioteca
Municipal de Torres Vedras para consulta.
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