Faz hoje 100 anos que as mulheres tiveram a hipótese de entrar para a função pública
O decreto-lei n.º 4676 promulgado a 19 de Julho de 1918 permitiu o acesso
aos cargos públicos às mulheres, mas continuou a vetar-lhe o direito ao voto
As mulheres portuguesas viram legitimado
há cem anos o acesso a "várias funções públicas" tradicionalmente
exercidas por homens, através de um decreto promulgado por Sidónio Pais que
deixava explícito que o voto não lhes seria permitido.
O diploma foi publicado no Diário do Governo, de
sexta-feira 19 de Julho de 1918, um mês depois de as sufragistas terem voltado
a exigir o direito de voto, num documento entregue ao então Presidente da
República.
"A partir da promulgação deste
decreto às mulheres munidas de uma carta de formatura em direito é permitido o
exercício da profissão de advogado, ajudante de notário e ajudantes de
conservador. É-lhes igualmente permitido, em igualdade de habilitações com os
homens, desempenhar as funções de ajudantes de postos e das repartições do
registo civil [...] . Às mulheres é reconhecida capacidade para servirem de
testemunhas nos actos do estado civil, e nos actos notariais [...]",
anuncia o documento.
Notícia
no DN
O Diário
de Notícias não passou ao lado da promulgação que abria o
mercado de trabalho na função pública às mulheres. No artigo cujo título era
"Garantias para as mulheres" lia-se:
"Em consequência de ter sido
anunciado um decreto novo sobre determinados empregos públicos para mulheres em
determinadas condições, tem havido grande concorrência de senhoras à Secretaria
de Estado da Justiça, a fim de solicitarem informações sobre aquele
diploma."
O debate estava na ordem do dia e as
mulheres começavam a desempenhar funções tradicionalmente destinadas aos
homens, como o caso
de Regina Quintanilha, a primeira mulher a licenciar-se em Direito e a exercer
como advogada.
A Ordem dos Advogados presta-lhe
homenagem ao assinalar, na página de internet, a publicação do decreto (4676)
da Secretaria de Estado da Justiça e dos Cultos e o percurso da pioneira.
"Às mulheres munidas de uma carta de
formatura em Direito é permitido o exercício da profissão de advogados,
ajudante de notário e ajudante de conservador", lê-se no diploma.
Regina Quintanilha faria a sua estreia
como advogada antes do decreto de 1918. Em 14 de Novembro de 1913 estreava-se
no Tribunal da Boa Hora, após conseguir uma autorização do Supremo Tribunal de
Justiça.
Na extensa lista de bastonários da Ordem,
criada por decreto de 1926, há apenas duas mulheres: Maria de Jesus Serra
Lopes, a primeira advogada a ocupar o cargo, em 1990, e Elina Fraga, eleita em
2013.
Regina
Quintanilha e Beatriz Ângelo
"A Regina Quintanilha é
importantíssima", disse à Lusa a historiadora Irene Pimentel, recordando
que a Constituição de 1911 permitia já às mulheres trabalharem na função
pública, pelo que o decreto terá vindo reconhecer ou regulamentar uma realidade
em curso.
Deixava, no entanto, a ressalva de que
cargos dirigentes continuariam destinados aos homens: "Também só se não
deverá perder de vista que, iguais embora em capacidade de inteligência e de
trabalho, há contudo, funções de direcção e de iniciativa que naturalmente estão
reservadas para o homem".
Era igualmente permitido às mulheres,
"em igualdade de habilitações com os homens", desempenhar as funções
de ajudantes dos postos e das repartições do registo civil.
Ao mesmo tempo, explicitava-se que a lei
portuguesa ainda não acompanhava o direito ao voto, referindo as "tão adiantadas sociedades anglo-saxónias", onde era já comum "a
concessão" desse direito político às mulheres.
"Sem se poder acompanhar ainda em
Portugal esse cada dia mais largo reconhecimento da competência e da
concorrência feminina, é já porém mester reconhecer o facto da frequência das
mulheres nos cursos de instrução secundária e superior e o consequente direito
do advento das diplomadas ao exercício das profissões liberais",
determinava o diploma.
A legislação era sobre trabalho, mas o
legislador aproveitava para clarificar a questão do voto no mesmo diploma.
Havia já ocorrido o caso de Carolina Beatriz Ângelo, viúva, chefe de
família e com a instrução requerida na lei, que conseguiu votar nas eleições
para a Assembleia Constituinte, alegando ter todas as condições. Foi a primeira
mulher a fazê-lo.
"A Constituição de 1911 não dizia que
só os homens é que podiam votar", refere Irene Pimentel.
"Evidentemente que aquilo foi muito complicado, porque houve todo um
processo em que o próprio regime disse que ela não podia votar".
Primeiro, o recenseamento não foi aceite.
"Ela colocou o caso em tribunal e apanhou um juiz que era filho de outra
feminista, Ana de Castro Osório", recorda Irene Pimentel, que estudou o
caso, juntamente com o de outras mulheres da I República e, depois, do Estado
Novo.
A decisão acabaria por ser favorável, uma
vez que Beatriz Ângelo era portuguesa e tinha todas as condições para votar,
segundo a lei, conforme interpretaria também o juiz.
Seguir-se-ia uma nova lei de voto que
destinava o sufrágio político exclusivamente aos homens. "O problema é que
isto continua, porque elas podem trabalhar e fazer muitas coisas, mas o voto é
que não", observa a historiadora.
O curto período do sidonismo teve "algumas leis benéficas
para as mulheres", assinala Irene Pimentel, sublinhando a
importância do elemento feminino no regime.
"Os ditadores - e o Sidónio foi um
ditador - e depois mais tarde Mussolini (a partir de 1922), em Portugal
Salazar, contam com as mulheres quer no lar quer também para que convençam os
maridos no apoio às novas ditaduras", defende.
Tanto Regina Quintanilha como Carolina Beatriz
Ângelo faziam parte de uma elite com capacidade para recorrer a outras
instâncias na luta pela emancipação.
O voto apenas viria a tornar-se universal
em Portugal após a revolução de 1974.
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